Perdi as
contas de quantas vezes encarei aquele espelho horas a fio. Ele estava na
parede do quarto dos meus pais desde sempre. Era robusto, pesado, “de corpo
inteiro”, e desde minha infância já tinha a trabalhada moldura de madeira
escura bastante desgastada. Aprendi, ainda criança, que espelhos refletem nossa
imagem e, por isso, passei a me reconhecer no que via nele quando o encarava.
Aquele ser era eu. Não me agradava em nada, mas era eu.
Eu vivia no
quarto dos meus pais porque era o maior cômodo da casa, tinha uma cama enorme e
eles só entravam ali para dormir. Criava nele esconderijos e passagens secretas,
e o usava como cenário para as histórias que inventava, nas quais podia ser
Alladin, Mulan, Renato Russo, a Magali da Turma da Mônica, o mocinho, a
mocinha, o bandido e o cavalo malvado do bandido. Todos, tudo, menos eu. Mas o
espelho continuava ali, desafiando minha imaginação, mostrando que por mais que
eu quisesse, não podia ser outra pessoa. Eu era aquilo que via nele. Sem sal,
sem açúcar, sem sentido.
Nos anos que se
passaram diante daquele espelho, a configuração do quarto permaneceu a mesma. O
incômodo que eu sentia quando me via diante dele, no entanto, aumentou
progressivamente. Eu, que antes não falava sobre isso por não saber explicar o
que incomodava, vi a adolescência ir transformando a imagem à qual tinha me
acostumado em outra que não reconhecia e que fazia ainda menos sentido. Um dia,
passei pelo espelho e quase morri do coração ao ver ali uma pessoa completamente
estranha. Segundos depois, quando me dei conta de que a pessoa era eu, senti um
nó se formar em minha garganta e, na tentativa de não sufocar, acabei por
soltar o grito que prendi no peito por todos aqueles anos. Chorei. As lágrimas
escorriam não só pelos olhos, mas por todos os poros desse novo corpo refletido
pelo espelho. Vi aquele rosto se contorcer de desespero, arranquei as roupas
que não me cabiam e, vendo refletida a carne nua, senti nojo.
Tentei arrancar meus cabelos, meus dentes, a pele, o sexo, tive vontade de
morrer, e, num rompante de fúria, arremessei um sapato contra o velho espelho
que se espatifou.
Com os olhos
fixos na madeira que antes sustentava o vidro e continuava presa à parede, percebi
minha respiração voltando ao normal. Aproximei-me da moldura e senti uma dor
lancinante no pé. Olhei para baixo e, encarando os cacos amontoados e sujos de
sangue, me reconheci, pela primeira vez, naquele ser desconstruído e repleto de
olhos mareados, narizes e bochechas rosadas. Tudo aquilo era eu. Já não via ali
um homem ou mulher, mas sim o alívio do “não ser”, do incógnito. Com uma leveza
que me era estranha, vi todos aqueles fragmentos se contorcerem outra vez para
formar, em todas as minhas bocas, o sorriso mais lindo que já dei.