Ontem tropecei num homem.
Um mendigo.
Ele não pulou na minha frente pedindo dinheiro, como muitos fazem.
Não.
Ele estava lá. Deitado.
Dormindo no chão gelado, coberto por um pano imundo, moscas e bolinhas de isopor.
Alguém provavelmente cortou isopor ali perto e o vento carregou as bolinhas pra cima do mendigo.
Mas eu não reparei em nada disso até tropeçar nele.
Lembro-me bem de que, quando cheguei a São Paulo, me assustava com os mendigos a cada esquina que virava. Aliás, não precisava virar esquina nenhuma, eu moro no Largo Santa Cecília, há mendigos por todos os lados pedindo dinheiro pra quem sai do metrô.
Crianças. As crianças eram as que mais me impressionavam.
Imundas, fedorentas, drogadas, largadas no chão.
E as pessoas passavam por elas como se não existissem.
Quando cheguei, tinha ódio desses paulistanos sem coração. Ódio.
Como podiam não notar que havia uma criança jogada no chão?
Como podiam não sentir o cheiro, passar indiferentes diante de tanto sofrimento?
Ontem eu tropecei num mendigo.
Saindo do trabalho, preocupada demais com o que ia beber à noite, distraída demais com a música que ouvia, avoada demais com tantas coisas tão importantes.
Tão importantes que fecharam meus olhos pra um homem que dormia no meu caminho.
Quem mora nessa terra doida que é São Paulo sabe que se for se comover com todos os mendigos que encontra, vai passar todos os segundos da vida comovido.
O paulistano precisa de certa indiferença pra sair de casa.
Mas não pode ser totalmente indiferente.
Ontem eu TROPECEI num mendigo.
Ele não acordou.
Mas eu sim.
E me peguei parada olhando pro teto, horas depois, morrendo de vergonha, lembrando do pano imundo, das moscas e das bolinhas de isopor e me perguntando em que momento exatamente meu coração interiorano tinha endurecido tanto.