Desilusão

30 de junho de 2011

Entrei no metrô com mais sono do que o normal e com a certeza de que estaria lotado.
Estava mesmo.
Não entupido, lotado, o que significa que dava pra me mexer lá dentro sem incomodar muito quem estivesse mais próximo.
Fui me apertando pra longe da porta porque ia demorar pra descer (é isso que todo mundo deveria fazer, viu? Ficar parado na porta se você não vai descer na estação seguinte só atrapalha, amiguinho!) e encostei numa das barras laterais de segurança, de costas para as cadeiras.
Em meio a muitos empurrões, senti um toque diferente. Uma cutucada, na verdade
"Moça."
(MEU DEUS, QUE HOMEM LINDO!)"Oi?"
"Senta aqui no meu lugar"
(ME PEDE PRA SENTAR NO SEU COLO, SEU LINDO!) "Imagina, pode ficar."
"Não, por favor. Você parece cansada, pode se sentar."
(MELHORA ESSA CARA, MARINA, RÁPIDO, SORRIA) "Ah, brigada."
"Você tem um sorriso lindo."
(AI, MORRI!) "Ah...rs...brigada."
"Não precisa ficar vermelha."
(FALA ALGUMA COISA, SUA RETARDADA. TEM UM MORENO LINDO FALANDO COM VOCÊ! FALA COM ELE!) "É reflexo da blusa..." (REFLEXO DA BLUSA? QUE TIPO DE PIADINHA IDIOTA É ESSA? AH, DROGA! ELE SÓ DEU RISADA E COLOCOU O FONE DE OUVIDO DE NOVO. ATÉ O FONE DELE É LINDO. CARAMBA, ACHO QUE TÔ APAIXONADA! OLHA ISSO! OLHA ESSA BARBA MAL FEITA! OLHA ESSE BRAÇO, ESSE ABDÔMEN...A CAMISETA TÁ TÃO CERTINHA QUE MARCA CADA GOMINHO DA BARRIGA DELE. UM, DOIS, TRÊS GOMINHOS...E DESCENDO...)
Nisso o trem freia bruscamente, ele se desequilibra e o fone acaba se desconectando do celular, que berra pra todo mundo ouvir a música que, até então, só ele estava ouvindo.

Quem vai querer a minha piriquita, a minha piriquita, a minha piriquita?

Nem que fosse o cara mais lindo do mundo eu encararia aquela piriquita. Nem pensar!
Já terminei namoros de anos por menos.
Olhei assustada, me levantei, desci na estação seguinte e troquei de vagão.

Véio

20 de junho de 2011

Eu nasci.
Era 28 de maio de 1988. Século passado. Milênio passado.
Nem por isso faz tanto tempo assim.
Filha de uma dentista e de um engenheiro eletricista.
Filha de Pequeninha e Pequeninho.
Os dois com mais de trinta anos.
Os dois morando na gigantesca cidade de Clementina.
Os dois perdidinhos.
Reza a lenda que, no dia em que eu fui feita, meu pai soube que eu tinha sido feita.
Não me perguntem como...ele deve ter visto uma cegonha ou um pé de alface mais rechonchudinho, vai saber. Fato é que ele soube.
E mais, soube que era menina.
A família tirava sarro, claro.
"Como pode ter certeza de que é menina? E se nascer menino? Vai ser viado?"
Ele respondia dizendo que sabia o que tinha feito. E ponto.
Voilà, eu nasci.
Menina.
No final das contas ele sabia mesmo.
E quis o gosto musical dos meus pais que eu me chamasse Marina.
Sim, isso mesmo, meu nome vem daquela música chata "Marina-morena-Marina-você-se-pintou", que eu ouviria ao longo de toda a vida sempre que alguém quisesse me fazer uma homenagem.
Aprendi, com o tempo, a manter um sorriso quase verdadeiro quando alguém canta isso querendo me agradar.
É a vida.
Podia ser pior, se fosse só pelo meu pai eu me chamaria Marina Morena.

Brega, né?

Ainda bem que entrou em cena o bom senso da minha mãe. Bom senso ou trauma. Alguém que ganha o nome de Elizabeth DE FÁTIMA tem, no mínimo, noção de como um segundo nome pode virar um problema na vida de uma criança.
Até imagino a discussão dos dois, quanto a isso:

"Quase coloquei Marina Morena, no cartório. Quase."
"Sorte dela e sorte sua que você não colocou, ou teria que arrumar um sofá confortável em alguma casa que não fosse a minha, pra dormir."
"Ai, Pequeninha!"
"Nem ai nem meio ai, Pequeninho!"

Esse diálogo todo é invenção minha, claro.
O resto é verdade.
E Pequeninho e Pequeninha tiveram mais dois pirralhos filhinhos. André e Heitor. Sem segundos nomes.
E Pequeninho viajava muito.
Viajava tanto que a gente acabou mudando pra uma cidade mais próxima de São Paulo, pra que ele estivesse mais presente.
Durante anos, no entanto, ele não esteve.
Viajava a trabalho, às vezes por mais de uma semana, e a gente ficava com a minha mãe.
Quando ele voltava - cansado, estressado - as crianças, como toda criança, faziam bagunça. E ele ficava bravo.
A imagem do Pequeninho na família era de tio bravo. O cara que estava sempre sério. Que obrigava os sobrinhos a comerem feijão quando iam almoçar lá em casa. O carrasco.
Eu era a filha do carrasco.
E a filha do carrasco deu de arrumar namorado mais cedo do que devia. Pelo menos no conceito dele.
Acho que, por ele, eu não deveria arrumar namorados antes dos 40. Mas sou rebelde, né? Arrumei aos 16.
Já tinha ficado com outros meninos, mas, aos 16, decidi namorar sério, apresentar pra família...
Acabei enfiando o menino numa fria tremenda.
"Oi, seu Gilmar."
"Quantos anos você tem?"
"21"
"Minha filha tem 16, você não acha que ela é nova demais pra um rapaz de 21 anos, não?"
"Ah...acho que não."
"Estuda o que?"
"Não estudo."
"Por que?"
"Estou juntando um dinheiro pra faculdade"
"Trabalha em que?"
"Numa ótica."
"Mora sozinho?"
"Com a minha mãe."
"E seu pai?"
"São separados."
"Por que?"
"Oi?"
"EI, VOCÊ GOSTA DE PIZZA?"

Minha mãe entrou no meio da conversa, em caixa alta, pra parar com o interrogatório sem sentido do meu pai.
Ponto pra Pequeninha!

Por causa dessa braveza toda, nunca tive muito contato com o meu pai. A gente mantinha uma relação de respeito. Ele falava, eu obedecia, ou, se não obedecia, eu apanhava, e tava tudo certo.
Não me lembro exatamente quando foi que isso mudou.
Mas acho que foi pela época em que entrei na faculdade.
Talvez por ele ter visto que eu estava crescidinha. Talvez por ter caído da cama e batido a cabeça num belo dia de verão, meu pai passou de carrasco a melhor amigo do mundo. Do nada.
Parou de viajar tanto, resolveu conversar sobre tudo, começou a me chamar pra tomar chopps e a demonstrar muito mais carinho, em todos os sentidos.
Minha mãe diz que ele cresceu.
Meus tios dizem que ficou velho.
Eu acho é que ele descobriu que para impor respeito aos filhos não precisaria ser exageradamente rígido. Que rir não era sinônimo de dar moleza. Que aquela carranca não combinava em nada com o rosto dele - que, aliás, é idêntico ao meu.
E de pai que eu e meus irmãos respeitávamos, seu Gilmar se transformou no melhor pai do mundo, num palhaço que ri na hora certa e briga na hora certa, que aconselha como deve e fala besteira como deve, que a gente respeita sim, muito, e cada vez mais.
E hoje, dia 20 de junho de 2011, fazendo jus ao apelido de Véio, meu pai completa 53 anos.

Por toda essa história, por toda essa presença, por toda essa mudança, por tudo o que representou e representa a todos nós, seus filhos, amigos, irmãos, gostaria de dar os parabéns!
Ser o melhor pai do mundo não é pra qualquer um.
Mas eu já sabia que você seria no dia em que me fez.
Não me pergunte como.
No fim das contas, eu só sabia.

Todo o Sentimento

14 de junho de 2011

Sentada no chão frio, conferindo o relógio a cada cinco minutos, olho para a rua e espero. O vento frio incomoda, mas não o suficiente para desviar minha atenção - o que é uma pena.

Ao meu lado, um amigo fala que é bobagem esperar, que ele não virá, não será homem o suficiente para deixar a namorada e aparecer no último segundo de minha estadia na cidade.
Ele não vai dizer o que ficou tão óbvio em seus olhos, em suas atitudes.
Ele me quer.
Não pode, não deve querer, mas me quer.
E quer com tanta intensidade que faz com que eu espere aqui, do lado de fora, no estacionamento do prédio, sabendo que ele não virá.

Passa um carro, outro, mais um, uma moto, um gato, dois caras estranhos, uma menina sozinha, outro carro, outra moto, mais uma, um cachorro, passa todo tipo de gente na rua, o mundo na minha frente.

O mundo menos ele.

Duas horas depois, me levanto. Meu amigo me abraça.
Abro o portão, ainda esperando algum som da rua. Quando ele está se fechando às minhas costas, escuto.

Paro abruptamente.

Vejo tudo em câmera lenta, sinto tudo em câmera lenta. Um calafrio me percorre a espinha. Fecho os olhos assustados e me viro.

Se fosse um conto de fadas, ele estaria ali. Sorrindo, me olhando, de braços abertos.

Mas quando abro os olhos não vejo ninguém.

Vou embora no dia seguinte, lembrando do que queria ter vivido, sentindo falta do que não aconteceu, chorando copiosamente e tentando me lembrar do começo de um amor que, na verdade, só teve fim.