Biografando

14 de maio de 2010

Ribeirão Preto, 15 de setembro de 2002

Linda,

Ao contrário do que possa parecer, essa não é mais uma carta de amor...não só. Há muito ensaio escrever essas palavras, há muito planejo essa carta e, quando você receber, tenha certeza de que muito tempo terá se passado desde que ela foi escrita. Neste papel vou falar sobre mim. E não é egoísmo, quero apenas que você entenda a sua importância na vida deste pobre viajante.
Beijei pela primeira vez com 10 anos. Era uma criança. Não sabia o que estava fazendo mas queria mostrar que já era grandinho. Foi um beijo cronometrado por um dos outros dois casais que também estavam "se beijando". Uma piada, claro, mas a primeira pontada de puberdade mesclada à curiosidade sempre tão presente no meu dia-a-dia.
Disse que estava namorando pela primeira vez com 14 anos. Era só um rolinho mais sério, eu gostava era de outra pessoa. Fui namorar de verdade com 16. Durou pouco mais de um ano e foi lindo...mas não acabou muito bem. Erro meu, confesso, o tipo de erro que não cometo mais.
Virgindade? Apesar de ser tão precoce com o meu primeiro beijo não perdi a virgindade tão cedo não. Idade nesse caso é bobagem, o que vale dizer é que valeu muito a pena.
Namoro? Voltei a namorar depois de entrar na faculdade. Um namoro com altos e baixos, muito mais baixos que altos, o que é uma pena.
Em todos esses anos de vida, muitos, você sabe, só havia me apaixonado uma vez. Na época eu era adolescente e, depois, passei a achar que só tinha me sentido daquele jeito porque era criança demais pra saber até onde era saudável me entregar a outra pessoa.
Levei a vida muito bem nesses anos sem paixões, gostando muito de muitas pessoas mas desgostando tão rápido quanto havia gostado.
Foi nessa bagunça de conhecer novas pessoas e culturas que você apareceu e fez uma baderna na minha cabeça. Bom seria se fosse só na cabeça. Meu coração fica apertado quando lembro de você, do seu sorriso, do seu cabelo, tão comprido, tão liso, tão lindo. Fecho os olhos e chego a sentir sua presença do meu lado. O que chega a ser engraçado, porque isso tem gerado algumas dificuldades na hora de dormir. Então fico pensando em você, lembrando da gente e durmo querendo sonhar contigo e sonhando as vezes, e aí acordo feliz, radiante.
Por que estou falando de mim? Pra falar de você! Você que se tornou tão importante, tão essencial em tão pouco tempo.
Obrigado por ter me transformado num cara melhor. Mais que tudo, você me provou que a criança inocente que se entrega sem medidas está sim muito viva dentro de mim. Meu coração tem pulado amarelinha, corda, cela. Cada dia está mais alegre, mais vivo.

Eu te amo! Desse crianção que sabe que também te perturba o sono,
Heitor

Atitude

30 de abril de 2010

Pisou na escola pela primeira vez ao 33 anos. Muda, filha de boias-frias que se mudaram para São Paulo em busca de uma vida melhor, nunca havia tido a oportunidade de estudar, nem o incentivo, de maneira que também não sentia a necessidade de conhecer as letras, as palavras. Os números conhecia, havia lidado com eles a vida toda: tantos alqueires de terra, a hora do almoço, os centavos de cruzeiro no fim de cada dia.
Aos 23 anos, cansada daquela vida, subiu na boleia de um caminhão e deixou os pais. Acabou por se casar com o caminhoneiro um ano depois.
Se comunicavam como era possível, quase sempre com olhares e sinais, mas, após alguns anos, como acontece com a maioria dos casais, a comunicação foi ficando difícil. Foi quando decidiu entrar pra escola. Colocou na cabeça que, se soubesse escrever teria a chance de dizer o que precisava para salvar o casamento.
Foram dois anos de muito esforço, aprendendo as letras, as estruturas da língua.
Um dia, sentindo-se preparada para bater de frente com o marido caso fosse necessário, pegou um papel e escreveu com letras infantis: "Você não mora sozinho. Abaixe a merda do assento da privada, não jogue as cuecas no chão e me procure na cama. Sou muda, não cega ou frígida."
Foram felizes para sempre.

Sobre o dia em que o mundo acabou

19 de abril de 2010

Dirigia tranquilamente na Marginal Tie...não, peraí, vamos deixar esse texto mais verídico.
Estava há horas parado tranquilamente no familiar congestionamento das seis horas da tarde na Marginal Tietê, vidros fechados, blindados, retrovisor direito virado para dentro pra evitar que fosse arrancado pelos motoqueiros, como tinha acontecido com o esquerdo, quando gritos mais altos do que as buzinas o tiraram do transe gerado pela música que tocava no rádio. Olhou pra frente e viu as pessoas saindo do carro, olhando pra cima e correndo pra todas as direções.
Primeiro achou que fosse um arrastão, mas então viu que ninguém tentava roubar os carros que estavam sendo abandonados.
Abriu a porta, olhou pra cima e quase caiu duro pra trás.
O céu estava cor-de-rosa, bem diferente da típica e natural cor vermelha do céu noturno paulistano.
Um raio azul, seguido de um trovão ensurdecedor, cortou o céu, dando início a uma chuva incessante, não de água ou de fogo, como descrito no Apocalipse, mas de canivetes.
Era, de fato, o fim do mundo.
Entrou de novo no carro, em partes por não saber o que fazer, em partes para fugir dos canivetes.
O grande momento, tão profetizado, havia chegado. E ele estava ali, no trânsito. Não sabia quanto tempo de vida ainda tinha e decidiu pensar no que fazer naquele momento tão decisivo.
Pegou o celular pra ligar para esposa, para a sogra, para o cunhado. Percebeu que não queria falar com ninguém naquele momento. E nem que quisesse, não havia sinal pra ligar pra ninguém.
Ele podia sair correndo, dando risada como um louco e fugindo como desse dos canivetes, que agora caiam com tanta força que começavam a perfurar a lataria do carro.
Podia procurar uma igreja, havia tantas, com certeza encontraria alguma ali perto. Mas ele nunca tinha sido religioso e, colocando-se no lugar de Deus, se ele existisse mesmo, não daria bola pra um sujeito que só acreditava nele na última hora.
Pensou em pular no rio Tietê, dar uma nadadinha, improvisar um borboleta, como fazia quando era garoto pra impressionar as meninas, mas percebeu que aquilo seria mais mortal do que ficar deitado no chão com a chuva de canivetes.
Podia também fechar os olhos e esperar. O que, convenhamos, não teria a menor graça.
A cabeça estava a mil e demorou um tempo pra que ele percebesse que a chuva de canivetes havia parado. Olhou para o céu e viu que estava negro e cheio de estrelas, saiu do carro louco de felicidade, subiu no capô e gritou pra comemorar a vida. A partir daquele momento ele ia cuidar melhor da família se a família ainda existisse, ia diminuir o ritmo de trabalho, beber menos, parar de fumar, ia até fazer exercícios e trocar o açúcar por adoçante, isso ele prometia, prometia com uma fé que nunca havia tido, pra Deus, pra esposa que talvez estivesse viva, pra ele mesmo, prometia até para os canivetes.
Foi nesse auge de extrema alegria que “PUF”
O mundo explodiu.

"Você me abre seus braços e a gente faz um país"

11 de abril de 2010

Cinquenta e quatro dias, foi o tempo que demorou pra que a ficha caísse.
Não chorei no avião voltando pra casa,
não chorei quando vi minha família,
não chorei quando voltei pra Rio Preto e tive um tempo sozinha pra pensar,
não chorei quando fui pra faculdade,
não chorei contando as histórias de Santiago, repetidas vezes, pra milhares de pessoas.
Não chorei nem olhando as fotos.

Chorei hoje.

Hoje, quando pessoas que conheci lá, e que vieram conhecer a cidade, foram embora.
Hoje, quando meu amigo italiano me abraçou e disse "Hasta pronto", e senti pela primeira vez que provavelmente o "pronto" não será tão "pronto" assim...talvez nunca exista. E, se existir, existirá mais uma vez, ou duas.

Ele me abraçou, entrou no carro. Eu virei de costas e fui andando. Pra minha casa. Não olhei pra trás, não acenei, e senti um nó na garganta que nem meu último dia em Santiago me deu.
Meu amigo é a representação de tudo o que eu vivi e não vivo mais.
É a representação dos melhores meses da minha vida.
É a representação da fugacidade do tempo e da minha mania besta de olhar pras pessoas como se fosse a última vez.
Talvez, dessa vez, seja mesmo.

Crescendo

30 de março de 2010

"Você não é de nada, só come marmelada! Você não é de nada, só come marmelada!"
As vozes, em coro, provocavam. Maldosas vozes vibrantes, que reverberavam na mente tristonha do menino mais novo do bairro.
O desafio era difícil. Enfrentar de face aberta a feia face do medo. Fugir dos frios olhos fixos a sua frente.
Só tinha dois jeitos de acabar com as provocações.
Fugir
ou
Pular.
Fugir ele não ia. Tinha já seus seis anos e seria covardia simplesmente se virar e sair correndo sozinho.
Ele sempre era considerado café-com-leite, por ser o mais novo, e agora, diante de toda a turma do bairro, inclusive do irmão mais velho, tinha de provar que já era homem, e não um saco de batatas.
- Ok, eu pulo.
"Ohhh, vamos ver ele pulando então, Paulinho, agacha"
De sacanagem colocaram o menino mais alto do bairro pra ser a "cela". O menino era tão alto que de brincadeira era chamado de Paulinho Não tinha mais jeito ele ia ter que pular se afastou pra ganhar uma boa distância fechou os olhos pediu emprestadas as asas do anjinho da guarda de quem a mamãe sempre falava esqueceu a gritaria dos outros meninos respirou fundo pegou carona no ventosaiucorrendodeuumgritoe...

Voou

El echar de menos

15 de março de 2010

Começou como brincadeira.
Ele com o jeito engraçado e descontraído de sempre jogou cantadas pra ela, como jogava para todas, e ela, ao contrário do que ele esperava, gostou.
Na primeira vez que saíram juntos foram a um sex shop, "só pra dar risada mesmo", como sempre se diz.
Saíram algumas noites pra beber com todo mundo. Três ou quatro vezes.
A partir da segunda vez o "sair com todo mundo" era só uma desculpa, os dois só trocavam olhares entre si e o fato de outras pessoas estarem presentes era mera formalidade.
Sentindo uma atração incontrolável ele tentou ficar com ela.
Não conseguiu...não totalmente.
Algo nela, talvez a vontade estampada nos olhos indo de encontro à boca que dizia que não queria nada, tornava tudo ainda mais incontrolável pra ele.
Depois de muito insistir, muito investir, muito implorar, muito querer, ele conseguiu roubar um beijo que foi retribuído, mesmo que por poucos segundos.
O beijo fez o pescoço dele arrepiar, o coração bater mais forte, o tempo parar e todas essas coisas bonitinhas que dizem que acontece quando se está apaixonado. Se bobear, até sininhos ele ouviu.
Não foram muito além desse beijo, mas o vazio que ele sentiu no dia que foi embora mostrou que nem era necessário muito mais do que isso.
Os dois não estão juntos por mil motivos que não vêm ao caso, mas ele, ao sentir-se vazio com a ausência dela sentiu-se também completo. Tinha outra vez um motivo pra acreditar que podia ser realmente feliz com alguém:
A felicidade extrema que experimentou quando menos esperava, por menos tempo do que queria, com uma intensidade maior do que a permitida.

"Eu ando pelo mundo prestando atenção em cores que eu não sei o nome..."

18 de janeiro de 2010

O mundo é mesmo uma coisinha engraçada.
Sai do calor da minha casa, há alguns meses, para descobrir que posso sentir calor quando os termômetros apitam 5ºC, e ainda comentar com o vizinho ao lado "nossa, que bom que deu uma esquentada, né? Hoje tô só com duas calças!"
Descobri que na França não tem pão francês, que em Nápoles não tem sorvete napolitano, que Santiago de Compostela não fica na Espanha, que os portugueses não tomam café da manhã, mas comem o "pequeno almoço", que é possível fazer grandes amigos passando uma noite num hostal, que sim, quem tem boca vai a Roma, que os italianos realmente falam com as mãos, realmente comem macarrão todos os dias, que tomam "caipiriña" e que eu adoraria falar italiano.
Provei o chá inglês na Itália, o café da manhã americano na Inglaterra, a pasta italiana na Espanha e fiz espanhola na...
Haha, mentira, não fiz espanhola. Os fatores físicos que me impediam de fazer isso ainda impedem. Não volto assim tão mudada pro Brasil.
Mas volto diferente.
Mais gordinha, mais trabalhadora, mais festeira, com um bom senso de localização (o que é ótimo, pra quem não tinha nenhum), sabendo andar de metrô, de trem, de avião, dando mais valor às coisas pras quais já dava muito valor e dando um pouco de valor às coisas pras quais não dava nenhum.
Mas, como prometi para o meu irmão, o olhar ainda é o mesmo.
Os olhos não, já viram muitas coisas e voltam um pouco mais míopes. Mas o olhar tranquilo e o sorriso são os mesmos.
Com a belíssima diferença de que agora estão muito, incrivelmente, infinitamente
mais frequentes.

Pensamentos soltos

14 de dezembro de 2009

Pombas, se soubessem a inveja que nós, humanos, temos da sua liberdade de voar, não pisavam nunca no chão...

nem pra comer pipoca.

Completa

26 de novembro de 2009

Dentre as tantas superstições dos homens
Prendo-me apenas a uma,
que nem superstição se considera,
mas uma mescla de crenças contadas.

Quando olho para um avião vejo mais do que se vê.
Uma máquina carregadora de gente e sonhos,
capaz de levar aos céus meus desejos mais íntimos
com apenas o fechar dos olhos, um pedido sincero e um sopro.

Mas um dia, não diferente de todos os outros,
vejo quatro desses metálicos gigantes com asas
entrecruzando o céu num jogo-da-velha de nuvens
e surpreendendo-me, pela primeira vez, sem nada para pedir.

Conheço, assim, a sensação de não querer nada.
Vejo-me sozinha e sem outro objetivo que não olhar para o céu.
E admirando a beleza das linhas brancas no tão raro azul
enfrento a (in)felicidade de ter tudo o que quero...e mais nada.

Salamanca

16 de novembro de 2009

A descoberta mais surpreendente que fiz desde que viajei é que meu coração não está em um lugar, ou trancado dentro de mim, mas igualmente dividido entre as pessoas que amo.
Não preciso estar na minha cidade, basta ficar poucos minutos com gente que realmente conheço para me sentir, mesmo que por poucos instantes, em casa.