- Bom dia.
- Onde eu estou?
- Mal educado, já começa com as perguntas e nem me cumprimenta.
- Quem é você?
- Alguém que te deseja um bom dia.
- Ei...eu te conheço, não?
- Talvez.
- Conheço, é claro que conheço. Não sei onde, mas sei que já te vi!
- Talvez. Eu te conheço, mas não esperava te encontrar com essa cara.
- Que cara?
- Tem um espelho atrás de você, dá uma olhada.
- Ué, é o meu rosto, normal. Qual o problema?
- Você está velho.
- Estou?
- Está. Aliás, estava.
- Como assim?
- 40 anos nas costas. Da primeira vez que esteve aqui, tinha só 17. Naquela época você era mais educado, pelo menos.
- Bom dia, droga!
- Droga não é o meu nome.
- E qual é o seu nome?
- Qual é o seu?
- O meu? O meu é...é...não me lembro...
- Se não sabe nem o seu nome, porque quer saber o meu?
- Sei lá, estou com o meu nome na ponta da língua, mas não sai.
- Não importa o seu nome. Ele já não representa você.
- E o que me representa?
- Talvez o que te trouxe até aqui.
- E onde exatamente é aqui?
- Aqui é o lugar onde nenhum vivo chega e de onde poucos saem vivos.
- Eu morri?
- Morreu.
- Como aconteceu?
- Como da outra vez.
- Ninguém morre mais de uma vez.
- Não?
- Não sei, morre?
- Parece que sim.
- Como foi? Não me lembro.
- Ninguém te salvou.
- Me salvou do que?
- Quando viu que ia morrer, você esticou a mão, berrou o quanto deu, mas era tarde demais.
- Como foi que eu morri?
- Afogado.
- Eu nunca morreria afogado, sei nadar muito bem.
- Você não morreu afogado na água, morreu afogado em você mesmo, no amor que sentia.
- Do que você tá falando?
- Não tem nada de errado em entrar de cabeça nas coisas, contanto que saiba sair depois. E achei que tivesse aprendido. Mas aí aparece aqui de novo? Para com isso!
- Você é duro demais, sabia? Tem essa carinha de anjo, mas é duro demais.
- Você acha que minha carinha é de anjo, mas não tá me vendo. Tá olhando pra mim, como olhou pra você no espelho. Olhou, mas não viu.
- Claro que vi, estou vendo.
- Está vendo e não sabe quem eu sou? Não sabe meu nome e não sabe o seu?
- Seu nome também está na ponta da minha língua, simplesmente não sai.
- Eu sou você, babaca.
- Se você é eu, então eu sou quem?
- Eu.
- Não to entendendo mais nada.
- Eu sou você, a parte de você que ficou aqui quando morreu da primeira vez. Não esperava mesmo que fosse voltar a viver inteiramente, não é? Eu sou a parte que te fez falta a vida inteira. O moleque com cara de anjo que você matou.
- Mas não queria ter matado.
- Não importa.
- Não tenho como recuperar isso? Salvar você?
- Salvar VOCÊ, você quer dizer.
- Não sei, estou confuso.
- Não, não tem.
- Eu não posso voltar?
- Voltar pra que? Se voltasse deixaria uma parte grande demais aqui. Viveria do que?
- De amor.
- Mude suas respostas, você já disse isso da outra vez.
- E menti pra você?
- A ideia era que você vivesse de amor, não que morresse disso, criatura.
- Acho que de amor se vive e morre todos os dias.
- Nossa, que lindo! Você poderia escrever um livro de auto-ajuda, se estivesse vivo.
- Qual parte, exatamente, eu deixaria aqui?
- A parte mais legal você já deixou da outra vez.
- Metido.
- Falando sério, se você chegou até esse ponto de novo, acha mesmo que vale a pena voltar?
- Não queria morrer.
- Você corre um risco sério de voltar pra lá com pouco mais do que um corpo, vazio de sentimentos. Tem certeza de que quer voltar?
- Vazio?
- Vazio.
- Vazio como?
- Como uma casa muito engraçada, que não tem teto, não tem nada. E ninguém vai poder entrar nela não, porque a casa não terá chão.
- Já ouvi isso em algum lugar.
- É Shakespeare.
- Oh.
- E aí? Não é porque vou passar a eternidade aqui que tenho o dia todo. Quer voltar ou não quer?
- Depende de eu querer?
- Digamos que a sua vontade tem bastante peso nessa decisão.
- Quero.
- Correndo o risco de morrer de amor de novo?
- Morrer mais uma, duas vezes, que diferença faz?
- Cada vez que isso acontece você perde uma parte de você, pensei que tivesse entendido.
- Eu entendi, mas não acho que a gente saia igual de qualquer situação importante da vida.
- Não é questão de "sair igual". É questão de perder muito, a ponto de não ser mais ninguém.
- Mesmo assim, quero voltar.
- Por que?
- Porque a tal da casa engraçada do Shakespeare, apesar de não ter nada, ainda pode ser chamada de casa.
- Oi?
- É uma metáfora.
- ...Oi?
- Moleque burro, ainda bem que te deixei aqui.
- Não começa, hein!
- Eu quero voltar!
- Por que?
- Porque a dor vai passar.
- Como você sabe?
- Eu não sei. Só espero.
- Voltar não vai ser fácil.
- Acho que se fosse eu não saberia como agir. É sempre tão difícil. Já estou acostumado.
- Então vai, Carlos, ser gaúcho na vida.
- Não lembro meu nome, mas não é Carlos. E eu sou paulista.
- É uma citação, poxa vida. Vai ser inculto lá longe. Aproveita esse vazio que vai sentir e lê um pouco.
- A gente se vê.
- Mais cedo ou mais tarde.
- Espero que mais tarde.
- Ei...espera, só uma última coisa.
- Diga.
- Obrigado por não me deixar te convencer de que viver não vale a pena.
- Mas pensei que...
- Não pense. Nunca foi o seu forte. Ame, cara. Ame intensamente. Não seja idiota, mas ame. Se suas experiências e sua dor não te derrubaram, se eu não te derrubei, sei que nada vai derrubar. Boa sorte.
- Valeu.
Sentindo-se mais velho, perdido e extremamente sozinho, abriu os olhos, enxugou as lágrimas, respirou fundo e recomeçou a juntar os cacos.
Só pra se afogar mais uma vez.
Só pra se afogar mais uma vez.
9 pitacos:
Nada como juntar os cacos... Sempre. Um dia a gente aprende a colar eles certinho, hehehe
"- Já ouvi isso em algum lugar.
- É Shakespeare.
- Oh."
RACHEI!
Levantar pra cair de novo.
E o moleque chama o outro de inculto. Hahaha!
Vá, Carlos, vá ser gaúcho na vida. hahahaha
O Drummond deve ter se revirado na cova. hahahahaha
Juntar os cacos faz parte. E a gente so se quebra por coisas que valiam a pena ser quebrado.
Tenha uma boa catação.
Hahahahahahahaha!
Adorei, Má!!! Muito bom! Me fez parar para refletir algumas coisas. Beijão!!!
Muito bom mesmo Má!
Bem "happie end" mas bonitinho..^^
auahsuahsuahs
beijão!
Vi seu blog no retweet de uma amiga, gostosinho de ler, parabens.
Já li isso em algum lugar...e não foi Shakespeare =/
hahahahahahahhahahaha
Muito bom!
Mistura de reflexão com um seilaoquê cheio de graça!
O segredo realmente é a paz...
E se quiser uma ajudinha pra juntar os cacos tô aqui sempre!
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