Agora falando sério

31 de agosto de 2011

Ontem tropecei num homem.
Um mendigo.
Ele não pulou na minha frente pedindo dinheiro, como muitos fazem.
Não.
Ele estava lá. Deitado.
Dormindo no chão gelado, coberto por um pano imundo, moscas e bolinhas de isopor.
Alguém provavelmente cortou isopor ali perto e o vento carregou as bolinhas pra cima do mendigo.
Mas eu não reparei em nada disso até tropeçar nele.
Lembro-me bem de que, quando cheguei a São Paulo, me assustava com os mendigos a cada esquina que virava. Aliás, não precisava virar esquina nenhuma, eu moro no Largo Santa Cecília, há mendigos por todos os lados pedindo dinheiro pra quem sai do metrô.
Crianças. As crianças eram as que mais me impressionavam.
Imundas, fedorentas, drogadas, largadas no chão.
E as pessoas passavam por elas como se não existissem.
Quando cheguei, tinha ódio desses paulistanos sem coração. Ódio.
Como podiam não notar que havia uma criança jogada no chão?
Como podiam não sentir o cheiro, passar indiferentes diante de tanto sofrimento?
Ontem eu tropecei num mendigo.
Saindo do trabalho, preocupada demais com o que ia beber à noite, distraída demais com a música que ouvia, avoada demais com tantas coisas tão importantes.
Tão importantes que fecharam meus olhos pra um homem que dormia no meu caminho.
Quem mora nessa terra doida que é São Paulo sabe que se for se comover com todos os mendigos que encontra, vai passar todos os segundos da vida comovido.
O paulistano precisa de certa indiferença pra sair de casa.
Mas não pode ser totalmente indiferente.
Ontem eu TROPECEI num mendigo.
Ele não acordou.
Mas eu sim.
E me peguei parada olhando pro teto, horas depois, morrendo de vergonha, lembrando do pano imundo, das moscas e das bolinhas de isopor e me perguntando em que momento exatamente meu coração interiorano tinha endurecido tanto.

Insone

22 de agosto de 2011

Ela tá quase dormindo.
Quase. Dá pra sentir que a respiração tá mais pesada. Acho que vou falar. É, vou falar. Dizem que quando a pessoa tá nessa fase de sono leve ela escuta, mas não ouve, absorve a informação, mas não tem certeza se ouviu mesmo. Se for verdade, é a hora certa. É claro que eu quero que ela saiba, é óbvio, mas e se ela não gostar? O que diabos eu vou fazer se ela não gostar? Sei lá, nunca me senti desse jeito. Que coisa! E se ela gostar? E se ela abrir aquele sorriso lindo dela e me olhar no fundo dos olhos como só ela sabe fazer... O que é que EU vou fazer? Provavelmente vou ficar sem ação. Ela é boa em me deixar sem ação. Tá respirando mais fundo. Cadenciado. E agora, falo ou não falo? E se essa história de falar pro inconsciente for bobagem, quando vou tomar coragem pra falar pra ela de novo? Quando, meu Deus? QUANDO? Acho que é a hora. Se ela não gostar eu finjo que tava dormindo. Boa ideia. Quem fala dormindo é ela, eu sei. Fica linda até quando fala dormindo. Posso dizer que falo dormindo também, ué, por que não? Por que não? Isso, vou falar.
Vou falar.
Que medo.
Mas e se...Ah, dane-se, ou eu falo ou explodo.

Ei, linda...

Eu te amo.

Apenas começamos.

17 de agosto de 2011

Algumas pessoas não precisam de muito pra se tornarem especiais.
Não precisam estar sempre presentes
Não precisam ligar todos os dias.
Não precisam chamar pra festas.
Não precisam de nada disso.
Algumas pessoas, aliás, não se tornam especiais.
São.
Simples assim.
Num mundo hipotético e justo, essas pessoas viveriam pra sempre, ou, se não vivessem pra sempre, chegariam pelo menos até os 100 anos. E ainda assim seria pouco tempo.
Num mundo hipotético e justo, pessoas boas não morreriam aos 24 anos.
Mas o mundo não é justo.
Mais que não ser justo, aliás, é injusto. Injustíssimo.
Hoje, um rapaz cuja música, sorriso e olhar tive o prazer de conhecer, deixa esse mundo injusto e segue em direção ao paraíso no qual sempre acreditou.
Se eu acredito nesse paraíso?
Com todas as minhas forças.
Se não por mim, por ele.
A vida, mais uma vez, se prova curta demais.
Assim como a morte se prova incompreensível.
Aproveita o paraíso, companheiro.
Deixe o violão a postos, a garganta aquecida e o sorriso tinindo.
Foi assim que sempre te encontrei.
É assim que quero te encontrar quando me juntar a você.


"É tão estranho
Os bons morrem jovens
Assim parece ser
Quando me lembro de você
Que acabou indo embora cedo demais"


Em homenagem a Flávio Periotto.
Músico, amigo, anjo.

O Astro

9 de agosto de 2011

Eu sou Geminiana.
Tenho ascendente em Escorpião.
Lua em Escorpião 
E isso não faz a menor diferença.

Pelo menos pra mim.

Ao contrário do que possa parecer, não sou do tipo cética. Me apego às coisas, tento acreditar, não duvido das ciências ocultas e da presença de espíritos.
É sério! Até convivo com um espírito lá em casa (o Ele) que insiste em apagar a luz da sala de vez em quando e reacender quando dá vontade. Não brinco, não tiro sarro, não acendo a luz quando Ele apaga. Ele cuida da casa à noite, Ele gosta de apagar a luz, Ele manda. Temos praticamente um acordo selado. Não me levanto de madrugada pra beber água, Ele continua invisível pra mim, e tá tudo certo.

Mas estou fugindo do assunto, não quero falar de espíritos, quero falar de signos.

É muito fácil pra vocês aí, não-geminianos, acreditarem nesse monte de baboseiras.
Facílimo!
Em algum momento da vida todo mundo tem um amigo que tem uma tia que se veste de hippie e que gosta de ler mãos, búzios, cartas, livros de auto-ajuda...e que, claro, sabe tudo de signos. E essa tia ensina isso pro seu amigo (ou sua amiga), que faz questão de fazer mapas astrais e definir características intrínsecas a cada aluno do colégio.
Sim, isso aconteceu comigo várias vezes. E o papo era sempre o mesmo:

"Áries? Oh! Áries é heroico, aventureiro. Signo de fogo! Touro? Temperamento forte, perseverante! Virgem? Signo da pureza! Leão? Respeitado, popular..."

"Ah, e Gêmeos?"

"Gêmeos é duas caras"

OOOOOPA, peraí! Eu sou de Gêmeos, meu pai é de Gêmeos, meu irmão é de Gêmeos.

Família Cury Reis, vulgo Família Duas Caras.
Prazer.

Não! Me recuso!

Melhor que ver a reação das pessoas quando você diz que é de Gêmeos, é ver a reação quando você diz que, além de tudo, tem ascendente em Escorpião. Parece que você cometeu um crime, amarrou pedra em rabo de cachorro, queimou formiga com lupa, sei lá.

"Gêmeos? Vixi! E seu ascendente? ESCORPIÃO? Caramba...Quê? Oi? Você ouviu isso? Tão me chamando ali, já volto! Adeus".

Ah, me poupe!

E as previsões de jornal, então?

"A passagem de Mercúrio por sua casa quatro faz com que os próximos dias sejam voltados a promover o bem-estar de seus parentes. Sol regente entra em virgem e movimenta sua vida familiar. Cuidado com o que fala e o que ouve, pois pode haver mal entendidos. Número da Sorte: 72. Cor: Laranja"

QUÊ?

Com o passar dos anos, algumas pessoas começaram a tentar me convencer de que era tudo uma questão de interpretação, que, pro meu alívio, eu não necessariamente era duas caras, e que sim, por mais que eu não acreditasse, a posição da Lua e do Sol no momento em que eu nasci influenciaria minha vida inteira.
Dizem que tem gente que nasce com a bunda virada pra Lua. Será que não é a Lua que fica virada pra bunda?
Bom, de qualquer forma, quando nasci ela tava virada pra Escorpião.

Nada contra quem acredita, vamos deixar isso bem claro!

Uma das minhas melhores amigas pretende tatuar o símbolo de Leão.
Isso. Tatuar. No corpo. Pra sempre.
Deixa ela! Não faço a vertente crente chata que bate na porta das pessoas nos domingos de manhã pra falar sobre minhas crenças. Não vou ficar falando que acho os signos uma grande bobagem (nem agora, nem aos domingos pela manhã), mesmo porque ela sabe disso.
O símbolo é bonito, ela gosta, o corpo é dela. Lindo! Eu não faria. Mas vai com fé!

Agora, esperar que EU acredite nisso? Já é um pouco demais.
Eu esperei os nove meses pra nascer e tal, sou paciente, mas e se acontece qualquer coisa e muda isso?
E se minha mãe fica nervosa com algum pênalti mal marcado contra o Corinthians (acontece com frequência) e entra em trabalho de parto mais cedo mudando, acidentalmente, meu ascendente?
Um pênalti poderia literalmente mudar toda a minha vida?
Ah, não, desculpe! Os astros que me perdoem, mas tenho mais o que fazer.

Vômito

29 de julho de 2011

Você chegou destruindo tudo.
Barreiras, medos, e, acima de tudo, minha inocência.
Não falo de virgindade, falo de inocência mesmo, da crença que eu tinha nas pessoas.
Antes de você, eu acreditava nas pessoas.
Eu acreditava no amor.
Eu acreditava no companheirismo.
Eu acreditava na amizade.
Eu acreditava em mim.
Caramba, eu acreditava em MIM!
E você jogou minhas crenças no lixo. Me enfiou num saco preto, foi até o córrego podre da cidade e me arremessou lá dentro.
Você ria.
Ria de mim.
E quando eu pensava em sair da merda do saco, só ouvia sua risada.
Me tranquei pro mundo porque o mundo era uma mentira.
Passei anos fantasiando uma vida toda fora daquele saco, e quando começava a acreditar que podia sair, lembrava da sua risada, da sua cara, dos seus malditos olhos claros.
Você olhava nos meus olhos.
Olhava, no fundo, e mentia.
Fui enganada pela mentira de que os olhos são o espelho da alma.
São nada.
Podem até ser o espelho de algumas pessoas, mas em você não...em você eles eram o retrato de alguém que você nunca foi e que eu sempre imaginei que fosse.
Você me olhava e ria.
Maldita risada.
Tive que lutar todos os dias pra quebrar cada mentira que você me contou.
Tive que voltar a acreditar em mim, primeiro.
Passei anos pra voltar a acreditar.
Anos.
Mas consegui.
EU CON-SE-GUI.
Ainda assim, não foi o suficiente pra acabar com o ódio que eu sentia de você.
Tive que lutar mais e voltar a acreditar nos amigos. Na bondade das pessoas. Na verdade.
Mas foi só quando voltei a acreditar no Amor que você caiu do pedestal no qual eu havia te colocado. Você ficava lá em cima, como uma imagem de santo que em vez de adorar eu detestava.
Quando voltei a acreditar no Amor, você perdeu a importância.
E foi aí, só aí, que pude falar sobre o que tinha acontecido sem desmoronar. Sem morrer de novo.
Você não sabe disso, mas eu morri. E pra voltar à vida tive que deixar coisa demais pra trás.
Não tenho medo de falar que me tornei quem sou hoje por sua causa.
Porque foi exatamente isso que aconteceu.
Você moldou quem eu sou hoje. Tanto em aspectos bons quanto em aspectos ruins. Principalmente nos ruins.
Eu não sei quem eu seria se você não tivesse me matado há 6 anos.
Isso também já não importa.
Tem gente que acredita que só há um amor na vida.
Eu rezei esses seis anos pra que isso não fosse verdade.
Não seria justo uma menina ter e perder o grande amor da vida aos 17 anos. Seria maldade demais.
Hoje, eu não tenho mais 17 anos.
Não tenho mais o rosto, o corpo, a cabeça e o olhar que tinha antes.
Não foi o tempo, foi você quem me tirou tudo isso.
Tirou não, me obrigou a mudar. A crescer.
E hoje, tantos anos depois, você aparece e assume seus erros. Conversa. Derruba esse ódio absurdo que cultivei por tanto tempo.
Hoje, pela primeira vez em seis anos, tiro um peso que carregava e que já nem sentia mais, de tão acostumada que estava.
Hoje, minha gastrite nervosa não vai atacar.
Hoje, eu vou beber e rir e voltar a me sentir inteira.
Não volto a ser quem eu era, porque isso é impossível.
Mas volto plenamente à vida.
E, por hoje, só por hoje, eu gostaria de agradecer.
Esses anos foram absurdamente difíceis.
Se você estiver lendo isso, saberá o quanto.
Mas hoje, assumindo uma atitude de homem pela primeira vez, você permitiu que eu respirasse.
Do fundo do coração, garoto, obrigada.
Muito, muito obrigada.

Rosário

28 de julho de 2011

Ela o amava.
E ele não estava nem aí.
Como muitas vezes acontece com tantos casais que não se formam.
Ela sabia tudo da vida dele.
E ele não dava a mínima.
Mas ela não se importava com isso, contanto que ele estivesse bem.
Ela sabia que ele não estava bem.
E ele não estava mesmo.
Reclamava da vida e da falta de amor sem se interessar pelo amor que transbordava dela.
Ela queria ajudar.
E ele não deixava.
Então ela não tinha a mínima ideia do que fazer.
Ela sempre passava por algumas igrejas.
E ele também, mas por outras.
Nenhum dos dois era religioso, nunca tinha sido e não se interessava por isso.
Ela entrou numa igreja um dia.
Ele nunca.
Se fosse parar para pensar, nenhum dos dois entraria mesmo.
Ela pediu que rezassem por ele.
E ele chorava escondido no quarto.
"Pedir ajuda a quem acredita não vai fazer mal", pensava ela.
Ela pediu a oração e foi embora.
E ele fechou os olhos decidido a morrer dormindo.
Os dois sentiam que só atrapalhariam se continuassem onde estavam.
Ela acordou rindo do que tinha feito.
E ele acordou se sentindo muito melhor.
Nenhum dos dois entendeu o que tinha acontecido.
Ela se esqueceu dele com o tempo.
Ele nunca entendeu a melhora repentina.
E
isso
pode
ter
a ver
com
a
oração.
Ou pode não ter nada a ver com ela.
Mas,
com
certeza,
teve
tudo
a ver
com
o gesto.

Presente

12 de julho de 2011

Um dia você surgiu.
Já fazia parte da minha vida há anos, mas foi como se estivesse te conhecendo naquele momento.
Não sei como nem porque abri meus olhos e meu corpo pra você. E só Deus sabe o quanto tive que me controlar pra não abrir demais o espírito também.
Intocável - mas eu estava ali, contigo.
Impossível - mas eu estava ali, vivendo.
Errado - mas eu estava ali, fazendo algo do qual nunca vou me arrepender.
Podem ter se passado segundos, meses, anos, séculos. Quem se importa?
A força ainda é a mesma.
E se milhares de empecilhos monstruosamente grandes hoje te tornam novamente intocável, novamente impossível e ressaltam o quão errada é nossa proximidade, saiba que nada dentro de mim mudou.
Nada.
O amor não muda.
Chamo de amor porque isso é lindo demais pra ter outro nome.
E é diferente de qualquer coisa que já senti.
Não menor, nem sei se maior, mas com certeza muito diferente de todo o resto.
E isso que sinto vai seguir comigo a cada novo gesto de carinho e atenção, a cada toque que lembre remotamente o seu.
Porque daqui por diante tudo será sombra do que você é.
Do que você É.

Sempre, pra sempre, no presente.

Desilusão

30 de junho de 2011

Entrei no metrô com mais sono do que o normal e com a certeza de que estaria lotado.
Estava mesmo.
Não entupido, lotado, o que significa que dava pra me mexer lá dentro sem incomodar muito quem estivesse mais próximo.
Fui me apertando pra longe da porta porque ia demorar pra descer (é isso que todo mundo deveria fazer, viu? Ficar parado na porta se você não vai descer na estação seguinte só atrapalha, amiguinho!) e encostei numa das barras laterais de segurança, de costas para as cadeiras.
Em meio a muitos empurrões, senti um toque diferente. Uma cutucada, na verdade
"Moça."
(MEU DEUS, QUE HOMEM LINDO!)"Oi?"
"Senta aqui no meu lugar"
(ME PEDE PRA SENTAR NO SEU COLO, SEU LINDO!) "Imagina, pode ficar."
"Não, por favor. Você parece cansada, pode se sentar."
(MELHORA ESSA CARA, MARINA, RÁPIDO, SORRIA) "Ah, brigada."
"Você tem um sorriso lindo."
(AI, MORRI!) "Ah...rs...brigada."
"Não precisa ficar vermelha."
(FALA ALGUMA COISA, SUA RETARDADA. TEM UM MORENO LINDO FALANDO COM VOCÊ! FALA COM ELE!) "É reflexo da blusa..." (REFLEXO DA BLUSA? QUE TIPO DE PIADINHA IDIOTA É ESSA? AH, DROGA! ELE SÓ DEU RISADA E COLOCOU O FONE DE OUVIDO DE NOVO. ATÉ O FONE DELE É LINDO. CARAMBA, ACHO QUE TÔ APAIXONADA! OLHA ISSO! OLHA ESSA BARBA MAL FEITA! OLHA ESSE BRAÇO, ESSE ABDÔMEN...A CAMISETA TÁ TÃO CERTINHA QUE MARCA CADA GOMINHO DA BARRIGA DELE. UM, DOIS, TRÊS GOMINHOS...E DESCENDO...)
Nisso o trem freia bruscamente, ele se desequilibra e o fone acaba se desconectando do celular, que berra pra todo mundo ouvir a música que, até então, só ele estava ouvindo.

Quem vai querer a minha piriquita, a minha piriquita, a minha piriquita?

Nem que fosse o cara mais lindo do mundo eu encararia aquela piriquita. Nem pensar!
Já terminei namoros de anos por menos.
Olhei assustada, me levantei, desci na estação seguinte e troquei de vagão.

Véio

20 de junho de 2011

Eu nasci.
Era 28 de maio de 1988. Século passado. Milênio passado.
Nem por isso faz tanto tempo assim.
Filha de uma dentista e de um engenheiro eletricista.
Filha de Pequeninha e Pequeninho.
Os dois com mais de trinta anos.
Os dois morando na gigantesca cidade de Clementina.
Os dois perdidinhos.
Reza a lenda que, no dia em que eu fui feita, meu pai soube que eu tinha sido feita.
Não me perguntem como...ele deve ter visto uma cegonha ou um pé de alface mais rechonchudinho, vai saber. Fato é que ele soube.
E mais, soube que era menina.
A família tirava sarro, claro.
"Como pode ter certeza de que é menina? E se nascer menino? Vai ser viado?"
Ele respondia dizendo que sabia o que tinha feito. E ponto.
Voilà, eu nasci.
Menina.
No final das contas ele sabia mesmo.
E quis o gosto musical dos meus pais que eu me chamasse Marina.
Sim, isso mesmo, meu nome vem daquela música chata "Marina-morena-Marina-você-se-pintou", que eu ouviria ao longo de toda a vida sempre que alguém quisesse me fazer uma homenagem.
Aprendi, com o tempo, a manter um sorriso quase verdadeiro quando alguém canta isso querendo me agradar.
É a vida.
Podia ser pior, se fosse só pelo meu pai eu me chamaria Marina Morena.

Brega, né?

Ainda bem que entrou em cena o bom senso da minha mãe. Bom senso ou trauma. Alguém que ganha o nome de Elizabeth DE FÁTIMA tem, no mínimo, noção de como um segundo nome pode virar um problema na vida de uma criança.
Até imagino a discussão dos dois, quanto a isso:

"Quase coloquei Marina Morena, no cartório. Quase."
"Sorte dela e sorte sua que você não colocou, ou teria que arrumar um sofá confortável em alguma casa que não fosse a minha, pra dormir."
"Ai, Pequeninha!"
"Nem ai nem meio ai, Pequeninho!"

Esse diálogo todo é invenção minha, claro.
O resto é verdade.
E Pequeninho e Pequeninha tiveram mais dois pirralhos filhinhos. André e Heitor. Sem segundos nomes.
E Pequeninho viajava muito.
Viajava tanto que a gente acabou mudando pra uma cidade mais próxima de São Paulo, pra que ele estivesse mais presente.
Durante anos, no entanto, ele não esteve.
Viajava a trabalho, às vezes por mais de uma semana, e a gente ficava com a minha mãe.
Quando ele voltava - cansado, estressado - as crianças, como toda criança, faziam bagunça. E ele ficava bravo.
A imagem do Pequeninho na família era de tio bravo. O cara que estava sempre sério. Que obrigava os sobrinhos a comerem feijão quando iam almoçar lá em casa. O carrasco.
Eu era a filha do carrasco.
E a filha do carrasco deu de arrumar namorado mais cedo do que devia. Pelo menos no conceito dele.
Acho que, por ele, eu não deveria arrumar namorados antes dos 40. Mas sou rebelde, né? Arrumei aos 16.
Já tinha ficado com outros meninos, mas, aos 16, decidi namorar sério, apresentar pra família...
Acabei enfiando o menino numa fria tremenda.
"Oi, seu Gilmar."
"Quantos anos você tem?"
"21"
"Minha filha tem 16, você não acha que ela é nova demais pra um rapaz de 21 anos, não?"
"Ah...acho que não."
"Estuda o que?"
"Não estudo."
"Por que?"
"Estou juntando um dinheiro pra faculdade"
"Trabalha em que?"
"Numa ótica."
"Mora sozinho?"
"Com a minha mãe."
"E seu pai?"
"São separados."
"Por que?"
"Oi?"
"EI, VOCÊ GOSTA DE PIZZA?"

Minha mãe entrou no meio da conversa, em caixa alta, pra parar com o interrogatório sem sentido do meu pai.
Ponto pra Pequeninha!

Por causa dessa braveza toda, nunca tive muito contato com o meu pai. A gente mantinha uma relação de respeito. Ele falava, eu obedecia, ou, se não obedecia, eu apanhava, e tava tudo certo.
Não me lembro exatamente quando foi que isso mudou.
Mas acho que foi pela época em que entrei na faculdade.
Talvez por ele ter visto que eu estava crescidinha. Talvez por ter caído da cama e batido a cabeça num belo dia de verão, meu pai passou de carrasco a melhor amigo do mundo. Do nada.
Parou de viajar tanto, resolveu conversar sobre tudo, começou a me chamar pra tomar chopps e a demonstrar muito mais carinho, em todos os sentidos.
Minha mãe diz que ele cresceu.
Meus tios dizem que ficou velho.
Eu acho é que ele descobriu que para impor respeito aos filhos não precisaria ser exageradamente rígido. Que rir não era sinônimo de dar moleza. Que aquela carranca não combinava em nada com o rosto dele - que, aliás, é idêntico ao meu.
E de pai que eu e meus irmãos respeitávamos, seu Gilmar se transformou no melhor pai do mundo, num palhaço que ri na hora certa e briga na hora certa, que aconselha como deve e fala besteira como deve, que a gente respeita sim, muito, e cada vez mais.
E hoje, dia 20 de junho de 2011, fazendo jus ao apelido de Véio, meu pai completa 53 anos.

Por toda essa história, por toda essa presença, por toda essa mudança, por tudo o que representou e representa a todos nós, seus filhos, amigos, irmãos, gostaria de dar os parabéns!
Ser o melhor pai do mundo não é pra qualquer um.
Mas eu já sabia que você seria no dia em que me fez.
Não me pergunte como.
No fim das contas, eu só sabia.

Todo o Sentimento

14 de junho de 2011

Sentada no chão frio, conferindo o relógio a cada cinco minutos, olho para a rua e espero. O vento frio incomoda, mas não o suficiente para desviar minha atenção - o que é uma pena.

Ao meu lado, um amigo fala que é bobagem esperar, que ele não virá, não será homem o suficiente para deixar a namorada e aparecer no último segundo de minha estadia na cidade.
Ele não vai dizer o que ficou tão óbvio em seus olhos, em suas atitudes.
Ele me quer.
Não pode, não deve querer, mas me quer.
E quer com tanta intensidade que faz com que eu espere aqui, do lado de fora, no estacionamento do prédio, sabendo que ele não virá.

Passa um carro, outro, mais um, uma moto, um gato, dois caras estranhos, uma menina sozinha, outro carro, outra moto, mais uma, um cachorro, passa todo tipo de gente na rua, o mundo na minha frente.

O mundo menos ele.

Duas horas depois, me levanto. Meu amigo me abraça.
Abro o portão, ainda esperando algum som da rua. Quando ele está se fechando às minhas costas, escuto.

Paro abruptamente.

Vejo tudo em câmera lenta, sinto tudo em câmera lenta. Um calafrio me percorre a espinha. Fecho os olhos assustados e me viro.

Se fosse um conto de fadas, ele estaria ali. Sorrindo, me olhando, de braços abertos.

Mas quando abro os olhos não vejo ninguém.

Vou embora no dia seguinte, lembrando do que queria ter vivido, sentindo falta do que não aconteceu, chorando copiosamente e tentando me lembrar do começo de um amor que, na verdade, só teve fim.