A - Vozes

22 de novembro de 2011


Vó Josephina

- Tia, por favor, faz bolinho de chuva, por favor, por favor, por favor.
- Mas, gente, tá o maior sol lá fora.
- Mas a gente quer, tia, faz bolinho de chuva por favor, por favor, faz, faz, faz.
- Pelo amor de Deus, esse bolinho é só fritura com açúcar e essas crianças não saem do meu pé. Não, gente. Sem chuva, sem bolinho.
- Por que?
- Porque... Bom... Porque... Por que vocês não vão brincar, hein?
- Crianças.
- Oi, vó?
- Por que vocês acham que o bolinho chama "bolinho de chuva"?
- Ah... Bom... Sei lá.
- Porque o ingrediente principal é a água da chuva. Não pode ser feito com qualquer água, só com a da chuva. Agora, pipoca não precisa de água nenhuma. Posso fazer pipoca pra vocês?
- Ah... Tá, pode ser então.



Vô David

- Vó! A senhora pode dar dinheiro pra gente comprar bala no Pedro?
- Não tenho dinheiro não.
- Ah, vó, por favor! Dá dinheiro.
- Já pediram pros pais de vocês?
- Já! Mandaram a gente falar com a senhora.
- Sério?
- ... Não, só disseram que não tinham dinheiro.
- Bom, eu também não tenho. Falaram com o seu avô?
- Vô! O senhor tem dinheiro pra gente comprar bala?
- Vocês vão parar de encher o saco da sua avó se eu der o dinheiro?
- Vamos!
- Então espera aí.
Ele entra num quartinho de tralhas e sai com uma caixa cheia de dinheiro. Os olhos das crianças brilham com algo que transparece "Esqueçam as balas, vamos comprar todos doces do bar do Pedro, aliás, vamos é comprar logo o bar inteiro".
As crianças saem pulando de alegria e voltam chateadas com uma bala cada uma, graciosamente dadas pelo Pedro do bar em troca da caixa de velhos cruzados do seu David.


Vô Pedro


- Filha, por que você tá rodando feito uma tonta?
- É legal, mãe. Tudo fica girando depois.
- Para com isso, você pode se machucar.
- Machucar nada! É engraçado.
- Marina, para agora!
- Não vou parar não.
- Faz o que quiser então.
- Marina.
- Oi, vô.
- É melhor ouvir a sua mãe. Girando assim você pode ficar tonta demais e acabar tropeçando no tapete, batendo a cabeça na estante e quebrando o pescoço ou algo parecido. Vai ser sangue pra todo lado, só vai dar trabalho pra gente.

Nunca mais brincou de girar.

Vó Leny


(Primeiro ano da faculdade)
- Vó, vou sair.
- Tá bom, leva a chave.
- ... Ah... Tá... Ah, vó, um amigo meu vem me buscar, a gente vai pra um bar, eu não devo beber muito porque amanhã tem aula, até umas 3h eu tô de volta, prometo. Já deixei tudo arrumado no quarto pra não acordar a senhora quando voltar. E meus pais estão sabendo que vou sair. Tô levando o celular pra senhora me ligar caso aconteça alguma coisa. Tudo bem?
- Hum... Tá bom, leva a chave.


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Agora, se você me conhece, pense bem... Isso explica muita coisa, não explica?

Terapia

10 de novembro de 2011

Oi... Meu nome é Marina e estou sem café há 2 meses.

Ooooooi, Mariiiiiiiina

Estar aqui já é uma grande conquista, sem dúvida.
Essa é a primeira vez que tenho coragem de procurar ajuda. Sempre achei que não precisava, que tomava café feito louca porque era gostoso e quentinho e tinha aquele aroma maravilhoso e... Vou parar por aqui porque tô ficando com água na boca.
Enfim, vocês vão se espantar com o que vou dizer, mas comecei a tomar café ainda criança.
Não, meus pais não deixavam. Diziam que não era coisa pra criança, que tirava o sono, mas tomavam com tanto gosto que não pude conter a curiosidade.
Provei uma vez.
Como dizem, às vezes uma vez já é o suficiente pra viciar.
Pra mim, foi.
E de fato perdi o sono. Não dormia a noite e ficava com sono de dia, o que me obrigava a tomar café pra não dormir. De tanto café pra não dormir na escola, não dormia durante a noite... Criei, aos 10 anos, um ciclo vicioso.
Até o ciclo era vicioso.
Minha mãe fez vista grossa a princípio, não queria acreditar, mas depois, quando comecei a oferecer trabalhos domésticos aos vizinhos em troca de uma xícara de café, resolveu interferir.
Sabendo que seria inútil me proibir de tomar café, já que ao lado da escola havia uma padaria com o melhor pingado da história, ela decidiu controlar meu vício.
Um café pela manhã. Um café às seis da tarde.
Só.
Ela mesma cortou o cafézinho que tomava depois do jantar pra me ajudar.
Durante alguns anos, funcionou. Até que entrei na faculdade.
Eu saí da casa dos meus pais e precisei passar noites em claro para entregar os trabalhos e estudar para as provas. Quando vi, estava tomando de quatro a cinco cafés por dia.
Com o tempo, o café parou de me tirar o sono, o que me permitia tomar a noite inteira e ainda ter um sono tranquilo.
Ao longo dos cinco anos da faculdade, convivi com uma gastrite que por muito pouco não se transformou em úlcera.
Fiz de tudo pra não morrer de dor de estômago: cortei refrigerante, gordura, cerveja... Cheguei até a tomar batata crua batida com água. É, eu sei, nojento. Fiz de tudo, menos cortar o café.
O café era sagrado.
Depois da faculdade então, tudo saiu dos eixos de vez.
Onde eu trabalho tem uma garrafa de café que fica cheinha o dia inteiro. A moça do café faz um novo a cada 3 horas.
É o diabo.
Às vezes tô fechada na minha sala, na maior inocência, e vem aquele cheiro delicioso de café sendo feito. 
Eu surto. Não consigo trabalhar enquanto não pego um copo e tomo de goladas.
Tem uma técnica pra tomar café fervendo de goladas, o tempo certo de espera, a força do sopro, a posição da boca. São técnicas que a gente aprende com o tempo.
São técnicas que quero esquecer.
Este ano fiquei doente. Uma doença que não quero revelar, basta vocês saberem que o remédio me impedia de ingerir cafeína.
Tentei tomar café sem cafeína, mas descobri que é pior que cerveja sem álcool.
Foram as três semanas mais difíceis da minha vida.
Passei noites em claro, chorei de desespero, dormi em momentos inoportunos, tive dor de cabeça, ataques de raiva, quase fui presa ao invadir um velório em busca de um copinho que fosse de café frio, cheguei a sonhar que era jogada numa xícara de café gigante e morria queimada. Acordei com febre.
Foi quando percebi que talvez aquilo não fosse normal.
Procurei ajuda na internet e descobri esse grupo.
Hoje, cortei relações com a moça do café. Carrego um vidrinho de acetona na bolsa pra cheirar toda vez que ela faz um café novo. Cada segundo é uma luta, cada gole de água é uma decepção.
Sei que tenho que viver um dia de cada vez. Cada dia um novo desafio.
Mas eu vou conseguir.
Obrigada.

Clap clap clap clap clap clap clap clap clap

Obrigado por compartilhar, Marina. Agora faremos uma pausa para um café. Voltamos em 20 minutos.

Cicatriz

4 de novembro de 2011

- No meu sonho, eu tinha tudo de volta.
- Tudo o que?
- Tudo tudo. Tudo que já tive e não tenho mais.
- Como o que?
- Como roupas, amigos, a casa onde eu morava.
- Algumas coisas de que você se lembrou?
- Não, algumas coisas não. Todas. Absolutamente todas, mas demorou um tempo pra eu perceber porque estava triste diante de tudo. Durante um tempo pareceram apenas... Sei lá... Coisas.
- E o que fez você perceber que essas coisas eram todo o seu passado?
- Percebi no momento que entrei na faculdade e dei de cara com ela.
- Vixi! Ela?
- É, ela. Ela veio e me beijou como se fizesse isso todos os dias. Como fez, de fato, no passado. Quando ela abriu aquele sorriso e falou que estava com saudade, eu olhei pra mim, pra minha roupa, pra faculdade, pra antiga casa, pra tudo, e...
- E?
- Saí correndo, me vi subindo as escadas do prédio onde moro e chegando ao telhado.
- Pra quê?
- Pra me jogar.
- Credo. Não teve medo de não ser um sonho? Sempre tenho esse medo durante sonhos esquisitos.
- Eu torci pra não ser um sonho, na verdade.
- Não entendi.
- Quando a gente perde as coisas, o tempo ajuda a apagar a dor. Seja uma coisa banal, como uma roupa, ou algo realmente importante, como um amigo. Doeu muito ver todas aquelas coisas que deixei pra trás. Mas olhar pra ela era mais do que eu podia suportar. Uma dor sobre-humana. A mesma que senti daquela vez.
- Nossa! Aí você pulou e acordou?
- Quando fui pular alguém me segurou.
- Quem?
- Acordei pensando nisso. "Quem, meu Deus, quem?"
- E aí?
- Aí olhei pro lado e vi que tava de mãos dadas com uma pessoa maravilhosa. Ela abriu os olhos com sono, sorriu e me abraçou. Então a dor foi sumindo até voltar a não ter sentido, a ser apenas uma cicatriz fechadinha.