Monólogo

19 de abril de 2011

- Bom dia.
- Onde eu estou?
- Mal educado, já começa com as perguntas e nem me cumprimenta.
- Quem é você?
- Alguém que te deseja um bom dia.
- Ei...eu te conheço, não?
- Talvez.
- Conheço, é claro que conheço. Não sei onde, mas sei que já te vi!
- Talvez. Eu te conheço, mas não esperava te encontrar com essa cara.
- Que cara?
- Tem um espelho atrás de você, dá uma olhada.
- Ué, é o meu rosto, normal. Qual o problema?
- Você está velho.
- Estou?
- Está. Aliás, estava.
- Como assim?
- 40 anos nas costas. Da primeira vez que esteve aqui, tinha só 17. Naquela época você era mais educado, pelo menos.
- Bom dia, droga!
- Droga não é o meu nome.
- E qual é o seu nome?
- Qual é o seu?
- O meu? O meu é...é...não me lembro...
- Se não sabe nem o seu nome, porque quer saber o meu?
- Sei lá, estou com o meu nome na ponta da língua, mas não sai.
- Não importa o seu nome. Ele já não representa você.
- E o que me representa?
- Talvez o que te trouxe até aqui.
- E onde exatamente é aqui?
- Aqui é o lugar onde nenhum vivo chega e de onde poucos saem vivos.
- Eu morri?
- Morreu.
- Como aconteceu?
- Como da outra vez.
- Ninguém morre mais de uma vez.
- Não?
- Não sei, morre?
- Parece que sim.
- Como foi? Não me lembro.
- Ninguém te salvou.
- Me salvou do que?
- Quando viu que ia morrer, você esticou a mão, berrou o quanto deu, mas era tarde demais.
- Como foi que eu morri?
- Afogado.
- Eu nunca morreria afogado, sei nadar muito bem.
- Você não morreu afogado na água, morreu afogado em você mesmo, no amor que sentia. 
- Do que você tá falando?
- Não tem nada de errado em entrar de cabeça nas coisas, contanto que saiba sair depois. E achei que tivesse aprendido. Mas aí aparece aqui de novo? Para com isso!
- Você é duro demais, sabia? Tem essa carinha de anjo, mas é duro demais.
- Você acha que minha carinha é de anjo, mas não tá me vendo. Tá olhando pra mim, como olhou pra você no espelho. Olhou, mas não viu.
- Claro que vi, estou vendo.
- Está vendo e não sabe quem eu sou? Não sabe meu nome e não sabe o seu?
- Seu nome também está na ponta da minha língua, simplesmente não sai.
- Eu sou você, babaca.
- Se você é eu, então eu sou quem?
- Eu.
- Não to entendendo mais nada.
- Eu sou você, a parte de você que ficou aqui quando morreu da primeira vez. Não esperava mesmo que fosse voltar a viver inteiramente, não é? Eu sou a parte que te fez falta a vida inteira. O moleque com cara de anjo que você matou.
- Mas não queria ter matado.
- Não importa.
- Não tenho como recuperar isso? Salvar você?
- Salvar VOCÊ, você quer dizer.
- Não sei, estou confuso.
- Não, não tem.
- Eu não posso voltar? 
- Voltar pra que? Se voltasse deixaria uma parte grande demais aqui. Viveria do que?
- De amor.
- Mude suas respostas, você já disse isso da outra vez.
- E menti pra você?
- A ideia era que você vivesse de amor, não que morresse disso, criatura.
- Acho que de amor se vive e morre todos os dias.
- Nossa, que lindo! Você poderia escrever um livro de auto-ajuda, se estivesse vivo.
- Qual parte, exatamente, eu deixaria aqui?
- A parte mais legal você já deixou da outra vez.
- Metido.
- Falando sério, se você chegou até esse ponto de novo, acha mesmo que vale a pena voltar?
- Não queria morrer.
- Você corre um risco sério de voltar pra lá com pouco mais do que um corpo, vazio de sentimentos. Tem certeza de que quer voltar?
- Vazio?
- Vazio.
- Vazio como?
- Como uma casa muito engraçada, que não tem teto, não tem nada. E ninguém vai poder entrar nela não, porque a casa não terá chão.
- Já ouvi isso em algum lugar.
- É Shakespeare.
- Oh.
- E aí? Não é porque vou passar a eternidade aqui que tenho o dia todo. Quer voltar ou não quer?
- Depende de eu querer?
- Digamos que a sua vontade tem bastante peso nessa decisão.
- Quero.
- Correndo o risco de morrer de amor de novo?
- Morrer mais uma, duas vezes, que diferença faz?
- Cada vez que isso acontece você perde uma parte de você, pensei que tivesse entendido.
- Eu entendi, mas não acho que a gente saia igual de qualquer situação importante da vida.
- Não é questão de "sair igual". É questão de perder muito, a ponto de não ser mais ninguém.
- Mesmo assim, quero voltar.
- Por que?
- Porque a tal da casa engraçada do Shakespeare, apesar de não ter nada, ainda pode ser chamada de casa.
- Oi?
- É uma metáfora.
- ...Oi?
- Moleque burro, ainda bem que te deixei aqui.
- Não começa, hein!
- Eu quero voltar!
- Por que?
- Porque a dor vai passar.
- Como você sabe?
- Eu não sei. Só espero.
- Voltar não vai ser fácil.
- Acho que se fosse eu não saberia como agir. É sempre tão difícil. Já estou acostumado.
- Então vai, Carlos, ser gaúcho na vida.
- Não lembro meu nome, mas não é Carlos. E eu sou paulista.
- É uma citação, poxa vida. Vai ser inculto lá longe. Aproveita esse vazio que vai sentir e lê um pouco.
- A gente se vê.
- Mais cedo ou mais tarde.
- Espero que mais tarde.
- Ei...espera, só uma última coisa.
- Diga.
- Obrigado por não me deixar te convencer de que viver não vale a pena.
- Mas pensei que...
- Não pense. Nunca foi o seu forte. Ame, cara. Ame intensamente. Não seja idiota, mas ame. Se suas experiências e sua dor não te derrubaram, se eu não te derrubei, sei que nada vai derrubar. Boa sorte.
- Valeu.

Sentindo-se mais velho, perdido e extremamente sozinho, abriu os olhos, enxugou as lágrimas, respirou fundo e recomeçou a juntar os cacos.
Só pra se afogar mais uma vez.

Biba & Eu

10 de abril de 2011

Eu a conheci num dia da semana, à tarde, na saída da escola.
Não esperava que aquele fosse um dia especial, muito menos que fosse um dos mais especiais da minha vida.
Se acreditasse em destino, diria que foi ele que fez com que ela chegasse até mim. Principalmente pelo jeito besta como aconteceu:

- Marina, segura esse cachorro um pouquinho? Já volto.

A menina nunca mais voltou e eu fiquei com o cachorro no colo. Segurando sem jeito, já prevendo a reação da minha mãe.

- TIRA ESSE BICHO DAQUI!
- Não tenho onde deixar, mãe.
- DEVOLVE ONDE PEGOU!
- Não peguei, a menina pediu pra eu segurar um pouquinho e não voltou mais.
- ELA PEGOU EM ALGUM LUGAR, DEVOLVE!
- Ela pegou numa caixa, mãe! Tava numa caixa. Você quer que eu coloque o cachorrinho na caixa e abandone aí de novo?
- Droga, não. Entra nesse carro! Vamos levar esse bicho pra algum lugar que aceite ele.
- Mãe... a gente não pode...
- NÃO!
- Mas, mãe, ele é lindo.
- Parece um rato. E mesmo que fosse o cachorro mais lindo do mundo, eu não deixaria! ENE, A, Ó, TIL - NÃO!
- Mas...
- Seu pai não pode nem sonhar que isso aconteceu! Não pode nem ver esse bicho.

Comecei a chorar. Não de tristeza, mas de medo do meu pai.
Só explicando pra quem conhece o seu Gilmar, - moço alegre, sorridente, festeiro, baixinho, de bigodão - meu pai não era exatamente esse doce que é hoje.
Ele era bravo.
Muito.
Raramente via um sorriso no rosto dele e sim, tinha medo do meu pai. Medo de que ele me colocasse de castigo e machucasse o cachorrinho.
Só quando cheguei em casa, depois de rodar toda a cidade e não encontrar um lugar que aceitasse o animal, percebi que estava errada quanto ao motivo de minha mãe não querer chegar em casa com um cachorro.

Ela sabia que se o cachorro entrasse não sairia mais.

- Pai (snif), eu...peguei...na...escola...desculpa...eu...
- Ahhhh, que coisinha mais bonitinha!!!! Deixa eu ver esse cachorro! Vem cá, cachorro!
- Ah...pai?
- Que coisinha mais linda! Como ele chama?
- Não sei.
- Tá sujinho esse bicho lindo, pensa num nome enquanto eu dou um banho nele. Vamos pro chuveiro, seu fofo? Vamos?
- NÃO VAI LAVAR ESSE BICHO NO MEU CHUVEIRO.

Caso não tenha percebido, esse grito histérico foi da minha mãe.

Naquela noite, meu pai deu banho no cachorro (Não sabíamos que os cachorros só podiam tomar banho depois de alguns meses. Descobrimos no dia seguinte), deu duas tigelas de leite pro cachorro (Não sabíamos que leite deixava o cocô mole. Descobrimos - urgh! - no dia seguinte), e deu o nome de Woody pro cachorro (Não sabíamos que era fêmea. Descobrimos no dia seguinte).

Aí você se pergunta, "Como, diabos, vocês não perceberam que o cachorro era fêmea?".

Eu tinha 10 anos, morria de medo da maioria dos cachorros e nunca tinha levantado a perninha dos que não tinha medo para saber como era.
Minha noção de sexualidade era básica: macho tem um negocinho pendurado pra fora, fêmea não.
-- Ah, como a vida é simples quando se é criança!
Minha mãe não chegava perto de cachorros desde pequena.
Meu pai era louco pra ter cachorro, mas não entendia muito do assunto.
Viramos o bicho de barriga pra cima e tinha um negocinho pra fora. Macho. E chamava Woody.

No dia seguinte - o dia das grandes descobertas - fomos ao veterinário. A família toda. Meu pai com um sorriso de orelha a orelha, meus irmãozinhos, minha mãe contrariada e o Woody no meu colo.
Não demorou muito pra descobrirmos que seria preciso escolher um nome novo.

- O que vocês acham de "Biba"?
- Igual a do Castelo Rá-Tim-Bum, mãe?
- É.
- Gostei!

Depois de perceber que a cachorra ia ficar em casa MESMO, minha mãe resolveu parar de reclamar e participar da brincadeira.
Ela não tinha nada contra animais, como vim a descobrir depois, mas sofreu muito, ainda criança, quando perdeu um cachorrinho. Ela não queria que a gente passasse pela mesma coisa.

E foi assim que o Woody virou Biba!

Esclarecendo algo importante, "Biba" só foi se tornar sinônimo de Homossexual uns 5 anos depois. O mundo é injusto, fazer o que? Não dá pra prever tudo. Tenho certeza de que muito "Bráulio" por aí sabe do que eu estou falando.
Ela é uma cachorrinha que nunca quis cruzar e que levanta a pata pra fazer xixi, mas isso não tem nada a ver com o nome. Se chamasse "Princesa" e gostasse de cachorrinhas nós respeitaríamos também, oras. O negócio é ser feliz.

E ela ficou do meu lado.

Estava do meu lado quando fiquei de recuperação de matemática pela primeira vez. Ela foi a primeira a saber do meu primeiro beijo e da minha primeira vez. Foi com ela que rolei pela varanda, brincando de jiu jitsu. Ela me atacou quando mexi na comida dela. Ela ficou do meu lado, com cara de dó, quando viu minha mão sangrando por causa da mordida. Ela foi a primeira a saber que eu tinha passado no vestibular.

E eu fiquei do lado dela.

Corri atrás dela quando ela fugiu pra rua, e xinguei o lixeiro que deu um coice nela, na minha frente. E chorei quando ela teve o primeiro ataque epilético. E ri quando a gente mudou de casa e ela parecia literalmente um cachorro em dia de mudança. Me desesperei quando ela tomou uma picada de aranha e ficou com a cara inchada. Rezei, quando fui pra Europa, pra que ela estivesse bem quando eu voltasse. E dei um beijo nela quando voltei. E chorei escondida quando ela quase morreu no final do ano passado.

E hoje minha melhor amiga já tem 13 anos. Esteve presente na maior parte da minha vida.
Me lembro disso quando ela me olha com carinha de cansada. Olhos esfumaçados pelo princípio de catarata.
E tiro sarro quando esse cansaço milagrosamente some na hora do jantar, momento em que ela volta a ter o mesmo pique que tinha com 2 anos e fica pulando do lado da mesa, pedindo comida.

Pilantra, é isso que ela é.

A pilantra que, desde 1998, escreve comigo uma das histórias de amor mais lindas do mundo.


Biba Cury Reis


"O tempo vai passar
Os anos vão confirmar
As três palavras que eu proferi
Amigo estou aqui"
(Toy Story)

Passos em Direção à Luz

1 de abril de 2011

Próxima estação, Luz. Acesso gratuito aos trens da CPTM. Os assentos preferenciais...

Levantou os braços. Num movimento leve e medido.
Uniu sobre a cabeça as pontas dos dedos, fechou os olhos e sorriu.
Contrária aos movimentos bruscos do trem, apoiou as costas na barra de segurança e, calmamente, ficou na ponta dos pés.
Com delicadeza, dobrou uma das pernas e fez um passo ensaiado, difícil, mas que para ela parecia tão simples quanto respirar.
Vestida de rosa dos pés à cabeça, postura ereta, esticou os braços para frente, trocou a perna de apoio e girou. Dançava.
A música tocava apenas em sua cabeça, mas percebi que, apenas por observar, eu mesma já ouvia cada nota, sentia cada vibração.
Alheia ao trem que agora chegava à estação, alheia ao barulho a sua volta, alheia aos perigos do mundo lá fora, alheia até mesmo ao meu olhar atento, a bailarina, no auge de seus cinco anos, sonhava.


Créditos de título a Tyler Bazz, que vira e mexe me salva de situações complicadas :)