Sensibilidade

23 de agosto de 2010

Ficaram trancados no quarto durante todo o final de semana, dois dias e duas noites inteiras. Saíam apenas pra comer e ir ao banheiro, depois voltavam e recomeçavam a brincadeira dos corpos, dos toques.
No domingo a noite, exaustos, resolveram que era hora de relaxar, descansar, acariciar as mãos em vez das nádegas, os cabelos em vez dos seios.
Nesse momento lindo ela sentiu algo forte e não se conteve:
"Eu te amo."

"..."

"Você ouviu? Eu disse que te amo."

"Ah...brigado."

"Brigado? Eu acabei de dizer que te amo e é só isso que você tem pra me dizer? Brigado?"

"...MUITO obrigado?"


Nunca mais se falaram.

Sono pesado

16 de agosto de 2010

Acordei depois de uma noite sem dormir, sentei na beirada da cama, procurei meus chinelos por todos os lados, e quando vi que eles voavam pelo teto percebi que estava sonhando. Acordei com a sensação de que a noite havia passado em quinze minutos, levantei na manhã morna, tomei um banho gelado, e fiz um estrago tentando agarrar a xícara de café quente que caiu da pia quando esbarrei pra pegar um bolinho. Senti minha mão queimar com o café e acordei na cama, deitado sobre a mão que na verdade formigava. Olhei no relógio e estava atrasado para o trabalho. Saí correndo feito louco, tropeçando na cama, na porta, no cachorro. Peguei o ônibus vazio, sentei e fechei os olhos, foi quando percebi que nenhum ônibus naquele horário estaria normalmente vazio e que eu não tinha cachorro para tropeçar. Acordei assustado com o toque do celular. Era meu chefe que estava ligando para me demitir por ter faltado três dias seguidos na firma. Comecei a chorar feito criança e ouvi ele me dizer que era para parar de ser maricas e seguir a minha vida. Dei um grito de desespero. Acordei novamente com o celular. Sentei na cama, me belisquei algumas vezes pra tentar acordar e não aconteceu nada. Atendi o celular e era meu chefe, dizendo que eu ia ser promovido pelo meu trabalho das últimas duas semanas. Achei que aquilo também já era demais. Mandei meu chefe a merda e desliguei o telefone.
Esperei.
Continuei esperando.
Dei um grito alto e forte que fez meu vizinho do apartamento de baixo pegar uma vassoura e bater no próprio teto para que eu parasse. Fui até a sala e não havia cachorro. Olhei pela janela e o movimento da rua era caótico. Me belisquei feito um doido e nada aconteceu.
Liguei para o meu chefe e ele não atendeu.
Liguei cinco vezes. Nada.
Sentei na cama. Nada.
Deitei na cama. Nada.
Fechei os olhos com bastante força pra tentar acordar de verdade. Nada.
Foi quando entendi porque minha mãe dizia que dormir de barriga cheia podia fazer mal.

Cadência

8 de agosto de 2010

Estava ofegante, as mãos suavam e o coração não batia, espancava. As pessoas em volta, ao contrário das ideias de sua cabeça, andavam em câmera lenta, falavam em câmera lenta.
Nada do que diziam era interessante, a não ser quando falavam dela. Ela que tinha ficado longe por tanto tempo e agora estava de volta.
Todos haviam se encontrado com Ela, menos a pessoa de mãos suadas e olhos atentos que tentava, a todo custo, se distrair com qualquer coisa que não fosse Ela.
Foi quando aconteceu.
Num segundo que pareceu uma hora, se encontraram, se olharam, sorriram, correram e se abraçaram, num abraço de uma hora que pareceu de um segundo.
A felicidade era tão grande que acelerou ainda mais o coração, e quando achou que ia ter um ataque cardíaco por finalmente estar com Ela, percebeu que estava tendo era um ataque de riso, daqueles que se espalham e contagiam o mundo.
Caminharam de braços dados, com passos cadenciados, para pouco depois cadenciarem também o riso, a respiração, o coração, os movimentos. Seguiam, outra vez de mãos dadas, na mesma direção.

Pra sempre

1 de agosto de 2010

Ele não era bonito, nunca tinha sido bonito, isto estava na cara. Era sim muito divertido, extremamente inteligente e bem mais velho, o que o tornava insuportavelmente atraente.

Ela também não era bonita. Era de natureza extrovertida, e, apesar de ter vivido muito para a idade, achava, como toda adolescente, que sabia de tudo no auge de seus 16 anos.

Ele tinha namorada. Ela sempre soube. O que tornava a relação professor-aluna apenas mais um detalhe picante da relação proibida.

Em meio a conversas sobre física, química e pedagogia, começaram a surgir discussões sobre namoro, relacionamentos e sexo. O horário de aula passou a ser o momento mais esperado do dia. As salas sem câmera da escola eram os esconderijos perfeitos. Os olhares trocados nos corredores, os toques discretos em momentos oportunos, as palavras sussurradas no ouvido em meio ao barulho da multidão de alunos na hora do intervalo e o jogo sempre limpo entre os dois, sem promessas ou mentiras, culminaram numa relação verdadeira, intensa e parcialmente escondida.
Parcialmente porque as pessoas em volta sabiam que acontecia alguma coisa entre os dois. Fato é que ninguém nunca soube o que realmente acontecia.

Não era só amor. Não era só paixão. Não era só amizade. Não era só sexo. Não era abuso. Não era.

Era adoração. Tesão. Confiança. Amizade coloridíssima. Pegada. Carinho. Respeito mútuo. Era algo que esfriaria com a distância mas que não acabaria nunca. Que ficaria guardado dentro dos dois e que voltaria à tona numa rápida troca de olhares, mesmo anos depois.

Ele talvez desistisse da namorada se ela pedisse. Ela certamente desistiria de muita coisa se ele pedisse. Mas isso nem sequer passaria pela cabeça dos dois. “Pedir” não fazia parte do acordo selado sem palavras ou assinaturas, apenas com olhares.
Quando estavam juntos, um encontrava o mundo dentro do outro, e esse mundo bastava.

Somente esse mundo poderia explicar o nome dela naquele testamento.

Quando ele faleceu, 20 anos após o primeiro beijo dos dois, deixou para ela um bom dinheiro e uma carta. A namorada, que já havia se tornado esposa e agora era viúva, lhe entregou tudo em mãos, comentando algo como: "nem sei quem você é, mas seu nome aparecia antes do meu no testamento".
Levou o pacote pra casa e abriu quando o marido dormia. Junto do dinheiro encontrou a única foto que os dois haviam tirado, muitos anos antes, e um recado simples que resumia de forma brilhante um sentimento tão diferente de todos os outros:
"Um dia você me disse que queria conhecer a Europa. O dinheiro é pra essa viagem que sempre quis te dar, mas nunca tive como. Só me arrependo de não ir com você. Só mesmo! Se tivesse outra vida, faria tudo exatamente como fiz, pra não correr o risco de perder o seu sorriso. Para a melhor aluna que tive, que por preguiça aprendeu pouco de física, menos ainda de química, mas tudo de amor. Aprendeu tanto que ensinou o mundo e me encheu de orgulho e conhecimento. Amo você.
A.L."
Foi a primeira e última vez que ele disse que a amava. A impressão que ficou pra ela, no entanto, é que isso tinha sido repetido milhares de vezes naqueles anos.
Deitou na cama, abraçou a carta e, sorrindo, disse para si mesma, "Boa noite, professor, até amanhã". Fechou os olhos e dormiu pra sempre.